domingo, 31 de julho de 2011

Uma canção de domingo - Capítulo 2

Lilian acordou.
Branco.
Cama.
Aonde estou?
Isso é um hospital? ...O que houve.
Ela mecheu os braços, e as mãos. Conferiu se as pernas ainda estavam lá.
Voltou a dormir.

Engraçado como as coisas são.
Um dia sua vida vai parar de fazer sentido, e você vai entender
perceber
que no fundo,
é engraçado. E esse parágrafo vai voltar à sua mente, e você vai achar mais engraçado ainda.

Lilian acorda de novo. Dessa vez tem uma policial junto com um homem,
ao lado da cama.
Eles falam alguma coisa...
Algo como se eles tivessem começando uma conversa
ou um assunto delicado.
Ela apenas ouvia o timbre da voz da policial, sem diferenciar palavras
e aos poucos, voltou a dormir.

Horas, dias, meses, anos, são unidades de medidas que não fazem muito sentido pra quem lê
se você parar pra pensar.
Era domingo.
Talvez não fosse domingo.
Mas parecia ser domingo, quando ela acordou, se sentindo bem.
Ela acordou, espreguiçou, passou a mão pela cabeça e percebeu que sua cabeça estava enfaixada,
ficou um tempo imaginando que deviam ter raspado seu cabelo.
O que havia acontecido?

Uma hora dessa narrativa é ignorada.

Ela acha um botão para chamar as enfermeiras. E chama.
E na sequência, ela se distrai com o soro pingando,
então aparece uma enfermeira
morena, eu diria que com uns trinta e poucos anos,
(e eu sou bom nisso de acertar a idade dos meus personagens)
com um rosto típico de gente que só quer que o expediente termine logo
pra poder voltar logo pra casa assistir TV,
e que só quer a semana termine logo
pra poder passar um dia inteiro assistindo TV e arrumando a casa.
Triste, mas verdadeiro,
um bocado verdadeiro...
De qualquer forma, há uma conversa chata entre paciente e enfermeira;
Paciente pergunta - O que houve, como eu vim parar aqui?
Enfermeira pega a ficha da paciente - Parece que você teve fratura craniana devido à uma viga que... bom, que esmagou sua cabeça.
Paciente em um ato clichê põe a mão no curativo mas logo afasta
com repulsa, e diz - O que aconteceu, eu não consigo lembrar.
Enfermeira que poderia ter dado uma resposta muito melhor apenas responde - Pois é bom se lembrar, porque a policial pediu para que eu avisasse quando você tivesse acordada porque ela queria te fazer umas perguntas.
Então a enfermeira sai,
vai dar um telefonema para a policial, provavelmente... não sei.

A cabeça de Lilian dói, e no fundo
ela sabia o que havia acontecido para ela estar ali.
Sabia o tempo todo,
mas é como se ela não tivesse certeza de que era real...
...Em um domingo nada é real.
Havia algo com a concentração dela
que fazia com que ela não conseguisse levar nenhum pensamento adiante,
ela apenas se distraia com as gotinhas de soro caindo, ou com alguém passando no corredor, ou então com as dobras de sua coberta.
Ela estava com calor.
Calor não costuma ser poético.
Ela chuta as cobertas,
mas parece que a poesia se foi, e no lugar dela entrou uma policial.
No mundo real,
os policiais sempre demoram mais.
-Bom dia senhora Lilian, eu sou a detetive Natasha.
-Que dia é hoje?
-Dia dezessete.
-... as pessoas nunca respondem o que a gente quer ouvir...
-O que?
-... Nada.
-Bom Lilian - Então ela tentou usar um tom de policial - receio que você saiba por que eu estou aqui. Na cena do acidente foram encontrados indícios de...
Então elas tiveram toda uma conversa chata, e batida, que você já deve ter visto em outras histórias.
A questão é, eu estou tentando escrever um livro que se adapte ao meu saco metafísico
que no caso, é pequeno,
ou inexistente.
Então, enquanto Lilian e Natasha conversam vou discorrer sobre como a realidade
se baseia em filmes, livros e ficção no geral.
Pare e pense na coisa mais moderna que você já viu no mundo real.
Isso mesmo, pense em algo bem grande, como uma instalação de arte, ou um shopping novo.
Pensou?
Agora pense na instalação mais tosca que você já viu em algum filme dos anos noventa tentando ser futurista, no star trek, ou star wars.
Perceba agora a semelhança ridícula que há entre os dois.
Exato, o moderno é só uma projeção de um passado tosco que ficou na nossa cabeça,
uma marca de como deveríamos ser
que acabamos por seguir.
Policiais são todos tarados por filme...

Olha, a conversa chegou numa parte interessante, a policial diz:
-Senhora Lilian, a senhora está cansada agora. Não sabemos quem foi o responsável por isso, mas acho que interroga-lá agora não vai mudar em nada. Tente descansar.
Ela fez que ia se levantar
mas Lilian-cabeça-enfaixada segurou ela pelo pulso
-Conversa comigo?
-Oi?
-Eu não sei... só fica aí e conversa comigo?
-Como assim? Sobre o que você quer falar?
-O que você gosta... ahm... de fazer? No seu tempo livre de não policial?
A policial ficou em dúvida,
se deveria ou não responder
mas sempre que ela ficava em uma dúvida maior que a sua capacidade de raciocínio
fazia o mais óbvio,
puro instinto policial.
Como o mais óbvio era responder, ela disse:
-Gosto de dançar.
Lilian fingiu interesse e a policial Natasha prosseguiu
-Já fiz dança de salão, contemporânea, jazz, um monte de coisas. Agora fiquei meio sem tempo, mas mesmo assim, pretendo me inscrever em uma aula de sapateado que tem aqui perto ainda essa semana.
-Ah, bacana...
-Você dança?
-Não sei... Não lembro.
-Você tem um corpo bom pra dança, aposto como dança.
-Eu não sei... Acho que não entendo qual é a graça de dança...
-Dança é pra mim a coisa mais gostosa que dá pra fazer com o nosso corpo e nossas vidas, sabe? Algo que você apenas faz por fazer, mas que te da uma sensação de que a sua vida foi totalmente preenchida, e você esquece todos os seus problemas. É como usar drogas, só que melhor, e menos vazio de sentido.
Lilian imagina a policial usando drogas, de uniforme e tudo... não
parece ser algo muito difícil de imaginar.
-Que dia é hoje?
A policial parece achar que Lilian não prestou atenção
ou que ela não estava interessada no seu discurso.
-Você precisa descansar agora, minha filha, e eu tenho meu trabalho pra fazer.
-Não, fica, por favor...
-Eu tenho mesmo que ir, o dever me chama. Melhoras...
Então ela se foi, e Lilian puxou a coberta e dormiu.
Em um domingo nada é real
e cair no sono é algo fácil...
Não que fosse domingo,
não era. Mas o que importa isso,
quando temos um livro todo pela frente?

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Gosto de metal - Capítulo 1

De olhos fechados ele sabia que havia algo de errado. Era um segundo de consciência
depois de tanto tempo.
-Talvez não ajude em nada, mas eu sempre soube de tudo.
-Do que você está falando? O que houve?
-As coisas. Todas as coisas. Elas não são vazias. Mas saber disso torna tudo vazio.
Suas pupilas
abriram tanto que quase engoliram todo o universo
numa tentativa vã de descobrir o que ele estava tentando dizer.
O monstro da sinestesia fazia com que ela sentisse
o sal das lágrimas que escorriam pelo seu rosto
a dor das olheiras dele
que pareciam já nem mais importar-lhe.
-Eu sempre soube de tudo, mas eu achava que eu podia estar errado. Sempre vi tanta gente errada por aí. E eu tinha medo de contagiar alguém com a minha doença, com meus pensamentos... Tinha medo que você virasse uma pessoa triste.
-O que aconteceu, meu bem?
-Eu tive uma conversa com o criador. Pedi para ele me eliminar. Eu não queria viver sabendo da verdade. Você... Não entende.
Então ele começou a chorar descontroladamente,
então ela foi abraçar ele,
então sua respiração acalmou.
Então o ar pareceu se acalmar também.
Então ele disse,
-Espero que você nunca entenda isso. Só quero que saiba, que eu não fiquei louco. Que eu nunca estive tão racional. E eu não quero que você desista... Não quero nada. Só queria te ver mais uma vez, pra ter certeza de que é tudo em vão, e nem o amor pode nos salvar do vazio.
Então ele pôs a mão para traz, num movimento suave
e tirou uma Glock
e pra quem não sabe o que é
é uma arma. pequena. Uma pistola, pra ser mais especifico.
Pôs ela na boca, e pintou as paredes.
Vermelho...
Eu nunca vou entender qual é a das cores, e a dos livros que começam pelo fim.
nunca.
Lilian ficou um tempo parada ainda.
Havia um grito preso, mas não era um grito de susto. Não mais. Era um grito de dor.
Ela queria desmaiar.

Alguns autores começam a história pelo fim.
Alguns autores escrevem sobre como lidar com a perda.
Eu não.
Alguns autores diriam que Lilian estava pasma, embasbacada, que tudo estava desmoronando... Eu não vejo nada disso, ou apenas não acho que isso tem relevância.
Digo que ela está de pé,
que sangue escorre pela parede
e seus olhos estão congelados, e dá até pra ver que o brilho deles congelou.
Mas nada disso importa pra quem lê.
Pra quem lê tudo é frio,
toda dor é distante porque não é real.
Enquanto você lia essas linhas, os olhos de Lilian foram baixando aos poucos, até o corpo de seu marido.
Aos poucos todo o sofrimento foi esvaindo, toda a vontade de gritar
deu lugar a algo. Algo a ver com morte e tempo de vida. O relógio da parede marcava meia noite, mas não era meia noite, não naquela parte do globo.
Morrer nunca parece uma opção
até que a gente escolhe morrer.
Afinal, morrer é uma opção. Uma opção solitária, sem muitas concorrentes, mas
uma opção.
Um dia eu quis escrever um livro interessante, que ajudasse as pessoas a matar um tempo de suas vidas
de uma forma agradável. Hoje, eu apenas contemplo Lilian, e percebo que as pessoas todas já são incapazes de sentir. Elas tem um raciocínio lógico bom demais, para esquecerem que isso é um livro. São inteligentes e boas demais para ignorar esse fato.
Hoje em dia, a parede é pintada de vermelho, os olhos de Lilian congelam, e as pessoas em alguma livraria ou em algum ônibus fecham o livro e vão tomar um sorvete, ou jogar um jogo no celular. Talvez sempre tenha sido assim
mas eu só conheço hoje em dia.
O chão começa a se desfazer
literalmente
sobre os pés de Lilian.
Mas não se preocupe, é só um livro. Procure se lembrar de quem você é, e que essa história não tem nada a ver com você. Sinta seus dedos tocando o papel, olhe ao redor, sinta a textura do mouse, ou do aparato futurista que você estiver usando para ler isto. Lilian não é real, ela não tem passado, você não pode ver ela, assim como o ar.
Ela é diferente de você.
Durante a queda, ela se pergunta de onde ela veio.
Ela deixa o corpo mole cair, ela é só uma personagem de um romance.
Ela tem o passado que eu quiser,
e eu não quero dar esse fardo de um passado para ela.
Então, na queda para o andar de baixo uma viga de metal cai encima de sua linda cabeça e amaça os neurônios da memória. Algo assim.
Você é diferente. E ao mesmo tempo indiferente.
Seus olhos passam pelas linhas,
você não sente nada de novo ou interessante
mas você é real,
não é um idiota quem decide seu destino,
você tem certeza absoluta de que seus pensamentos vem da sua cabeça,
e você sabe o que aconteceu ontem, e antes de ontem, e como você chegou aqui,
você se lembra da sua adolescência, da sua infância, você se lembra da sua origem, lembra o que você era
antes mesmo de existir,
isso
porque você é R E A L.
E a Lilian não. A Lilian cai no andar de baixo.
A Lilian não entende por que o chão desabou.
A memória recente dela permanece intacta,
e enquanto desacordada ela é levada à um hospital, a única atividade cerebral que permanece funcionando
como num sonho em replay,
é a memória do seu marido pintando a parede.
É como se trezentas e sessenta e duas vezes ela lesse o primeiro trecho desse livro.
Mas isso pra você
que não é nenhum personagem a ser petecado pelo destino
é nada.