segunda-feira, 18 de julho de 2011

Gosto de metal - Capítulo 1

De olhos fechados ele sabia que havia algo de errado. Era um segundo de consciência
depois de tanto tempo.
-Talvez não ajude em nada, mas eu sempre soube de tudo.
-Do que você está falando? O que houve?
-As coisas. Todas as coisas. Elas não são vazias. Mas saber disso torna tudo vazio.
Suas pupilas
abriram tanto que quase engoliram todo o universo
numa tentativa vã de descobrir o que ele estava tentando dizer.
O monstro da sinestesia fazia com que ela sentisse
o sal das lágrimas que escorriam pelo seu rosto
a dor das olheiras dele
que pareciam já nem mais importar-lhe.
-Eu sempre soube de tudo, mas eu achava que eu podia estar errado. Sempre vi tanta gente errada por aí. E eu tinha medo de contagiar alguém com a minha doença, com meus pensamentos... Tinha medo que você virasse uma pessoa triste.
-O que aconteceu, meu bem?
-Eu tive uma conversa com o criador. Pedi para ele me eliminar. Eu não queria viver sabendo da verdade. Você... Não entende.
Então ele começou a chorar descontroladamente,
então ela foi abraçar ele,
então sua respiração acalmou.
Então o ar pareceu se acalmar também.
Então ele disse,
-Espero que você nunca entenda isso. Só quero que saiba, que eu não fiquei louco. Que eu nunca estive tão racional. E eu não quero que você desista... Não quero nada. Só queria te ver mais uma vez, pra ter certeza de que é tudo em vão, e nem o amor pode nos salvar do vazio.
Então ele pôs a mão para traz, num movimento suave
e tirou uma Glock
e pra quem não sabe o que é
é uma arma. pequena. Uma pistola, pra ser mais especifico.
Pôs ela na boca, e pintou as paredes.
Vermelho...
Eu nunca vou entender qual é a das cores, e a dos livros que começam pelo fim.
nunca.
Lilian ficou um tempo parada ainda.
Havia um grito preso, mas não era um grito de susto. Não mais. Era um grito de dor.
Ela queria desmaiar.

Alguns autores começam a história pelo fim.
Alguns autores escrevem sobre como lidar com a perda.
Eu não.
Alguns autores diriam que Lilian estava pasma, embasbacada, que tudo estava desmoronando... Eu não vejo nada disso, ou apenas não acho que isso tem relevância.
Digo que ela está de pé,
que sangue escorre pela parede
e seus olhos estão congelados, e dá até pra ver que o brilho deles congelou.
Mas nada disso importa pra quem lê.
Pra quem lê tudo é frio,
toda dor é distante porque não é real.
Enquanto você lia essas linhas, os olhos de Lilian foram baixando aos poucos, até o corpo de seu marido.
Aos poucos todo o sofrimento foi esvaindo, toda a vontade de gritar
deu lugar a algo. Algo a ver com morte e tempo de vida. O relógio da parede marcava meia noite, mas não era meia noite, não naquela parte do globo.
Morrer nunca parece uma opção
até que a gente escolhe morrer.
Afinal, morrer é uma opção. Uma opção solitária, sem muitas concorrentes, mas
uma opção.
Um dia eu quis escrever um livro interessante, que ajudasse as pessoas a matar um tempo de suas vidas
de uma forma agradável. Hoje, eu apenas contemplo Lilian, e percebo que as pessoas todas já são incapazes de sentir. Elas tem um raciocínio lógico bom demais, para esquecerem que isso é um livro. São inteligentes e boas demais para ignorar esse fato.
Hoje em dia, a parede é pintada de vermelho, os olhos de Lilian congelam, e as pessoas em alguma livraria ou em algum ônibus fecham o livro e vão tomar um sorvete, ou jogar um jogo no celular. Talvez sempre tenha sido assim
mas eu só conheço hoje em dia.
O chão começa a se desfazer
literalmente
sobre os pés de Lilian.
Mas não se preocupe, é só um livro. Procure se lembrar de quem você é, e que essa história não tem nada a ver com você. Sinta seus dedos tocando o papel, olhe ao redor, sinta a textura do mouse, ou do aparato futurista que você estiver usando para ler isto. Lilian não é real, ela não tem passado, você não pode ver ela, assim como o ar.
Ela é diferente de você.
Durante a queda, ela se pergunta de onde ela veio.
Ela deixa o corpo mole cair, ela é só uma personagem de um romance.
Ela tem o passado que eu quiser,
e eu não quero dar esse fardo de um passado para ela.
Então, na queda para o andar de baixo uma viga de metal cai encima de sua linda cabeça e amaça os neurônios da memória. Algo assim.
Você é diferente. E ao mesmo tempo indiferente.
Seus olhos passam pelas linhas,
você não sente nada de novo ou interessante
mas você é real,
não é um idiota quem decide seu destino,
você tem certeza absoluta de que seus pensamentos vem da sua cabeça,
e você sabe o que aconteceu ontem, e antes de ontem, e como você chegou aqui,
você se lembra da sua adolescência, da sua infância, você se lembra da sua origem, lembra o que você era
antes mesmo de existir,
isso
porque você é R E A L.
E a Lilian não. A Lilian cai no andar de baixo.
A Lilian não entende por que o chão desabou.
A memória recente dela permanece intacta,
e enquanto desacordada ela é levada à um hospital, a única atividade cerebral que permanece funcionando
como num sonho em replay,
é a memória do seu marido pintando a parede.
É como se trezentas e sessenta e duas vezes ela lesse o primeiro trecho desse livro.
Mas isso pra você
que não é nenhum personagem a ser petecado pelo destino
é nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário