quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Revoluções vêm de dentro - Capítulo 3

Lilian de olhos fechados disse:
-Você sente às vezes que tudo o que você quer lendo livros, assistindo filmes e ouvindo músicas é encontrar uma frase que diga tudo sobre quem você e o porque de você se sentir assim?
Leonor era uma boa pessoa.
Boa mesmo, era do turno da madrugada do hospital.
Lilian ficou no hospital tempo suficiente
para decorar as enfermeiras
suas rotinas de trabalho
e o cardápio da semana.
O cardápio era o mais fácil,
de segunda a sexta eles serviam comida sem sal,
aos fins de semana, serviam comida fria e purê empelotado.
Ela também descobriu quanto ganhava uma enfermeira
e isso fez com que ela fosse mais paciente
com a falta de paciência delas.
Com excessão da Leonor.
... Talvez pelo adicional noturno, mas eu não acredito nisso
a questão é que Leonor era boa. Era paciente.
Parecia ter achado um ponto de estabilidade,
parecia ter nascido satisfeita com a vida que tinha.
Ela respondeu:
-Não deixe o tédio te afetar dessa forma, Lilian. Ocupe sua cabeça com alguma coisa, e já já você vai estar de volta à sua vida normal.
-... Eu não lembro como era minha vida normal.
-Não lembra nada?
-Não. Os policiais me disseram alguma coisa, mas nada relevante.
-Você não conseguiu entrar em contato com ninguém da sua família?
-Os policiais não acharam ninguém. Parece que muita coisa se perdeu quando meu apartamento desmoronou.
-Poxa vida... Deve ser difícil.
Lilian abriu os olhos
e olhou nos da enfermeira
-"Poxa vida... Deve ser difícil" é a tipica frase de quem não quer dizer absolutamente nada sobre o que pensa de verdade.
-Hahaha! Não é verdade.
então ela sorriu e prosseguiu
-Sabe, independente de quem sejam seus parentes e amigos, sua vida provavelmente deve ser que nem a de todo mundo. Sabe? Você deve ter tido uma infância, uma adolescência, depois deve ter virado adulta de uma hora pra outra, e por estar neste hospital, suponho que tenha um emprego. Talvez um namorado, deve sair aos fins de semana, talvez... Bom, talvez tenha filhos, mas eu acho que você é meio novinha pra isso. Deve ter que acordar todo dia cedo e...
Ela parou nessa hora por que viu que os olhos da Lilian haviam se enchido de lágrimas.
-A polícia disse que no apartamento eles acharam o cadáver do meu namorado. Parece que ele havia se suicidado um pouco antes de tudo desmoronar, que coisa louca não?....
-Meus pêsames, Lilian... Sinto muito ter tocado no assunto.
-Há, não sinta. Eu não lembro, se esqueceu?
-Não é o que parece...
-Mas é verdade. Sabe, eu fico triste por imaginar que eu tinha um namorado, e que agora ele está morto. Mas... não lembro. A policial que veio aqui me falou o nome dele, mas eu já esqueci. Eu sinto como se eu realmente não tivesse nada disso que você falou agora, como se eu tivesse nascido aqui, há algumas semanas, nessa cama de hospital. Parece coisa de algum filme clichê que eu não consigo me lembrar agora.
Leonor pareceu chocada, mas apenas continuou fazendo o que tinha que fazer, disse mais algumas palavras de conforto e foi embora.
Ela era uma boa pessoa.
Pra gente boa
saber que esse tipo de realidade existe,
dar de cara com tudo isso
e toda essa indiferença,
pra gente boa, sempre dói mais.

Até agora pouco os dias tinham passado
como um sonho estranho
para Lilian.
Mas agora ela começava a despertar.
Agora ela já não se distraia com o soro pingando.
Já fazia alguns dias
que ela havia acordado de novo para a vida.
E ela nunca tinha uma resposta satisfatória
do por que ela ainda estava internada.
Sempre parecia uma preocupação desnecessária
de que ela fosse entrar em colapso a qualquer hora.
As vezes ela achava que as pessoas estavam poupando ela da realidade.
Parecia que eles sempre tentavam fazer as coisas ficarem
mais bonitinhas e aceitáveis.
"Uma fratura bem pequenininha"
"uma partezinha do seu cérebro responsável pela memória"
ou então
"entramos em contato com a sua seguradora, eles estão analisando o caso"
Porra,
uma cabeça rachada, um cérebro vazando, e um apartamento destruído
são coisas preocupantes em essência!
O Barney poderia ter dado a notícia,
seria a mesma coisa.
E as pessoas achavam que ela estava lesada,
ela sentia isso.
Ela sentia que eles tentavam fazer ela ter a gravidade correta
da situação.
Mas a questão é, ela sabia o quanto tudo isso era grave,
talvez ela soubesse mais do que todo mundo,
mas ela simplesmente não lembrava de nada daquilo.
E nada daquilo afetava a vida dela.
Ela continuava na maca, e enquanto continuasse lá,
não poderia chorar, nem entrar em desespero por nada daquilo.

Ela acordou.
Era hora de tirar o cateter.
Era hora de pegar suas coisa na cabeceira.
Hora de ir ao banheiro
e vestir sua calça.
De tirar aquelas ataduras na cabeça
e ver como estavam seus pontos.
Lavar o rosto e sair pelo corredor
como se fosse algo normal.
Suas pernas agradeciam.
Seu pescoço construía uma estátua em sua homenagem.
E seus olhos, ao encararem a rua,
garantiram pela primeira vez
que ela não havia morrido e que o hospital não era uma versão de mal gosto do inferno
com comida sem sal.

Ela passou a primeira rua.
A segunda.
Ela estava no centro.
De qualquer lugar.
Ela estava com vontade de sentir.
Uma lanchonete.
Ela pediu um salgado.
-Tem de frango, carne, calabresa...
Ela interrompeu:
-Calabresa.
Ela ganhou novamente o sentido do paladar, o único que ainda não tinha voltado
desde que ela voltara a viver.
Ela quer conversar.
Queria que ela conversasse comigo.
Ela é legal,
mas ela resolveu conversar com o balconista.
-E aí, trabalha há muito tempo aqui?
Ele respondeu algo que ela não entendeu.
Barulho de carros e sotaque do nordeste
sempre dificultam a conversa com os balconistas.
Lilian fingiu que havia entendido e prosseguiu
-Ah... Sei. E é você que faz os salgados?
-Por que, tá ruim?
-Não não, tão uma delícia!
-É minha mulher. Tem dias que a menina aqui faz
mas na maioria dos dias é minha mulher,
menos de segunda. De segunda ela tem um encontro
de uns negócios da igreja, sabe?
-Ah sei...
-Tu vai na igreja?
-De vez enquando.
(Não preciso dizer que ela não sabia se ia ou não, preciso?)
-Qual igreja?
-Congregação.
-Ah...
Ele faria um "Ah" pra qualquer resposta que ela desse que não fosse "renascer".
-É... porque eu sou da renascer. Lá a gente tem esses grupos, sabe? De segunda, de fim de semana, durante a semana, essa coisa toda, ah, aposto como vocês tem isso na congregação também.
De repente ela se deu conta de que havia entrado em um assunto desagradável,
que ia acabar com ele dizendo que
não importa de qual igreja você é porque deus é o mesmo.
O que fez com que Lilian se arrependesse
mortalmente
de não ter dito que era Hindu.
-Ah, agente tem isso sim... Então, dá quanto?
-Só o salgado?
-Vê também uma Coca e um maço de Free.
-Tudo dá oito reais.

Ela abriu a carteira,
viu uma nota de cinco e um cartão de crédito.
-Passa no crédito?
Ele foi lá, pegou a máquina,
pôs o cartão, digitou o valor,
e deu pra ela digitar a senha.
Ela pôs
um
dois
três
quatro.
E deu senha incorreta, na maquina.
Ele olhou pra ela com cara de "você não sabe sua senha?"
E pôs de novo o cartão,
digitou o valor
e deu pra ela por a senha
enquanto se esforçava na sua cara de "Vê se não erra dessa vez".
Ela parou.
Sentiu sua mão soar,
a garganta secar.
Fechou os olhos,
olhou pra cima,
e chamou algum número.
veio um.
ela digitou um.
Ela precisava de mais três.
Ela pediu os três restantes.
Veio um sete.
Ela digitou um sete.
Então ela olhou pra cima,
pedindo outro número,
mas não veio nada dessa vez.
Nada mesmo.
Ela olhou pro homem da lanchonete,
pra máquina, fechou os olhos,
e de olhos fechados, apertou o
um
e o
sete
novamente.
Ficou um tempo processando,
e então começou a sair o papelzinho
transação aceita.

Quando você tiver numa situação que nem a da Lilian,
você vai ficar feliz
por saber que você tem um cartão de crédito e sabe a senha dele.
Acredite.

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