alguém percebe que existe um erro de intensidade.
Lilian ficou cega pelo reflexo do sol nos carros
e ela seguiu à direita, passando pela porta do Hotel Rebeka
e aos poucos sua vista foi voltando, e aquele pontinho verde de ceguidão
foi diminuindo.
Ela subiu uma daquelas ruas
que são uma subida tão subida,
que se você estica a mão pra frente
a ponta dos seus dedos toca o chão,
daquelas subidas que parecem que foi deus te sacaneando
daquelas que...
... acho que você já entendeu, uma baita subida.
No fim da baita subida, tinha um lugar
cercado por um muro branco
vazado
e lá dentro tinha uma biblioteca.
Lilian demorou um pouco para concluir que era uma biblioteca,
eu não culpo ela por isso.
Era como se de repente ali naquela subida
houvesse uma linha imaginária
que separasse totalmente o centro
do bairro, ou de algo até mais calmo que um bairro.
Ela andou reto, virou a direita, seguiu por muros baixos
por casas que olhavam para ela de forma amistosa
por ruas que faziam você vez o mundo pelos olhos de uma criança
cheias de velhinhos que ficavam nos portões
distribuindo "bom dia" pra quem passava.
Aí ela virou de novo.
Por uma outra rua, uma descida moderada,
com sombra de árvores,
ela imaginava como seria o dia-a-dia daqueles velhinhos
que deram bom dia para ela.
Ela virou a direita na praça,
desviou de algo que ela achou que era um coco,
mas que na verdade era só uma folha seca.
Lá na praça tinham algumas pessoas que sabiam olhar nos olhos.
Eu gosto daquela praça, e daquelas pessoas que sabem olhar nos olhos,
Lilian também.
Ela pensa nisso, ela sente isso. Ela pensa que eu gosto daquela praça,
e depois pensa "quem é eu?", e depois chega na conclusão
de que ela não está pensando nada com nada, e
vira a direita novamente.
Dessa vez tem uma subidinha bem breve e tão ingrime quanto a primeira.
E no final dessa subidinha, está a biblioteca
novamente.
Ela acha que isso é um sinal
para ela entrar na biblioteca...
... eu acho que quando você vira à direita, depois à direita depois à direita,
você acaba parando no mesmo lugar, mas o que eu acho não importa.
Na biblioteca Luzia sentia um gosto amargo na boca.
Ela começa a remexer na sua bolsa
procurando uma bala de maracujá que ela tinha comprado
à alguns dias atras, de um menino com problema de dicção, no ônibus.
Ela acha a bala, e olha uma menina estranha entrando.
A menina olha tudo, para em cada quadro de avisos,
em cada estante de panfletos,
até mesmo no bebedouro de água do lado da entrada
e no vaso de Lírios-da-Paz.
A menina caminha até o balcão,
para na frente de Luzia, e fica olhando pra tudo em volta,
na parede atras de Luzia,
sem se importar de fato com o silêncio.
-Pois não, quer alguma coisa aqui filha?
Luzia era simpática, tinha um jeito de gente bruta que é incapaz de maldade.
Sei lá por que, mas ela sempre me lembrou aquela enfermeira legal do hospital...
... de qualquer forma, Lilian respondeu:
-Oi, é... como faz pra alugar um livro aqui?
-Tem que trazer comprovante de residencia e algum documento com foto.
-Ahm... Eu moro no hotel ali descendo a rua... como eu faço?
-Não faz.
Lilian ia se sentir ofendida, mas a mulher disse:
-Quer bala de maracujá?
Lilian aceitou, a bala era boa.
-Você pode ficar lendo aqui.
-Não precisa de carteirinha?
-Não, carteirinha é só se você quiser levar o livro, mas como você disse que mora no hotel lá embaixo, fica fácil vir aqui pra ler os livros.
-Ah, brigada. - e ela deu um sorriso, e percebeu o que eu disse sobre Luzia.
Ela foi entrando na sessão de livros,
não tinha ninguém lá além dela.
Ela se sentiu feliz sem saber por que... Desde que ela subiu aquela rua
a felicidade se apossou dela,
como se apossa de uma criança que come muito açúcar.
Ela começou a cantarolar, e brincar de labirinto entre aquelas estantes
vez em vez ela parava para olhar algum livro.
Ela cantava
"está tão tarde,
não é hora de sair
pra ver o mar?
me telefona
não é hora de sair,
insiste mesmo assim"
E enquanto isso, eu chegava em uma praia
perdida em algum lugar da minha memória.
Ela abaixou, pegou um livro qualquer
capa de couro, verde escura.
Ela estava feliz demais pra ver qual livro era,
apenas caminhou com ele nas mãos, pra fora das estantes
em direção a uma parte onde tinham algumas mesas redondas, com cadeirinhas
e alguns pufes espalhados de forma aleatória.
Se jogou em um dos pufes
abriu o livro
não viu o nome do livro, nem do autor
apenas abriu e começou a ler
"...ele levantou e foi até a janela, ficou com o olhar perdido lá em baixo, o branco das casas. Aquilo costumava deixar ele até feliz. O bairro podia estar em decadência, mas enquanto os muros estivessem brancos todos achariam que está tudo bem. Então ele olhou pro lado e Clarice estava lá com o salgadinho na mão, encarando ele.
-Então... o que você faz?"
E ela continuou, conforme as horas foram passando.
Ela continuou enquanto o sol atingia o topo do céu
e as sombras iam encolhendo,
enquanto um homem correndo lá perto
era atacado de surpresa por um maníaco
que enfiava uma faca no seu estomago,
enquanto eu caia com o rosto rosto na areia
e enquanto um deserto árido e indestrutível
ia engolindo toda a criação.
Depois de tudo isso, ela sentiu fome, deixou o livro encima da mesa,
e saiu da biblioteca,
antes disso deu um sorriso para Luzia,
que estava parada perdida em pensamentos olhando em direção à porta.
Saiu da biblioteca, acendeu um cigarro, e olhou para aquela descida imensa.
Ela queria comida de verdade, lembrou que no boteco ao lado do hotel
serviam almoço.
Provavelmente não era comida limpa, mas devia ser comida boa.
Ela andou em direção,
e constatou
que descidas ingrimes são piores do que subidas ingrimes
e que quando se está no centro de qualquer cidade
suas energias são lentamente sugadas,
como se o todo daquele movimento todo
cobrasse um dízimo da sua vontade de viver.
Apagou o cigarro.
Ela já não sentia mais vontade de cantarolar,
apenas chegou no boteco,
pediu um prato feito, de sete reais,
com muita carne, muita gordura arroz duro
e feijão muito bem temperado.
Sentou numa mesa de plástico,
encheu a barriga.
Depois pensou quanto tempo teria que ficar ali até que tivesse forçar
de encarar aquela subida para continuar lendo o livro.
...
Chegou na conclusão que era melhor pensar nisso deitada,
pagou com o cartão, subiu lentamente as escadas,
estava fresco o clima dentro do hotel, estava silencioso,
o homem da recepção não estava lá
ela entrou na portinha, se arrastou pelo corredor.
Abriu a sua porta com a sua chave,
só mais alguns passos,
e finalmente.
Ela caiu de cara na cama.
Sonhou. Sonhou com um homem caído com a cara na areia e com uma cidade morrendo.
Algumas horas depois ela acordou com algum barulho no corredor
de alguém batendo na porta ao lado
e se sentiu disposta a encarar aquela subida novamente.
Ao lado da cama
havia um garrafa de água vazia, e de alguma forma
isso fez ela lembrar do seu caderno.
Ela devia ter esquecido ele em algum lugar,
provavelmente no bar ou na biblioteca.
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