domingo, 4 de setembro de 2011

Um desenho ao acaso - Capítulo 6

Eis que no boteco
só há o balconista,
e dois homens sentados ao fundo.
Eis que Lilian senta-se ao balcão.
Ela pede um xis calabresa um café e um torresmo.
E come um torresmo com o café,
enquanto espera o lanche.
Fazia tempo que o balconista não via uma mulher comer tão prazerosamente.
Ela comeu o torresmo e ficou com as mãos engorduradas,
quando perguntou onde estava o guardanapo,
ele respondeu algo com um sotaque
e com uma voz
que fez com que ela tivesse certeza que aquele homem
era o mesmo que havia atendido ela
no bar que ela foi após sair do hospital.
Mas ela ainda continuava com as mãos engorduradas,
e viu em uma das mesas uma televisãosinha de guardanapos.
No caminho para a televisãosinha, ela reparou nos dois homens conversando
duas mesas adiante.
Ela viu que um deles era enorme,
e a primeira vista ele só parecia enorme,
mas quando ela ficou de pé e se aproximou um pouco
viu que ele era mais que enorme.
Dava pra ver que ele tinha uma barba crespa,
era branco,
mas estava sujo
o cabelo parecia ter sido vermelho há muito tempo atrás
agora era de um preto que remetia sujeira.
Pensou que fosse um mendigo,
mas era grande demais para ser um mendigo.
...Não que exista limite de tamanho para se morar na rua
mas a polícia não deixaria um homem desse tamanho andando na rua...
... Não que isso faça muito sentido de fato,
mas foi o que Lilian pensou.

Após limpar os dedos ela voltou para o balcão
olhando para trás,
ouvindo uma voz cavernosa que saia daquele ser.
A voz era tão grave, que até então ela havia pensado ser um ronco
de algum motor na rua.
Ela parou de olhar... ou ao menos tentou.
Ela não conseguia.
Tentou se concentrar no café, no caderno que ela havia achado
no cheiro de calabresa que subia,
mas de dez em dez segundos ela olhava para o homem imenso.
Ela perguntou para o homem do bar
se ele tinha um lápis
e ele deu uma caneta preta para ela.
Ela abriu o caderno
e começou a desenhar as costas daquele homem enorme e sujo.
Só enquanto desenhava reparou que ele usava roupas
que pareciam ser ao mesmo tempo
velhas, caras e sujas. Mas velhas
do tipo que você nunca encontrará em um brechó.
E reparou que a cadeira que ele estava sentado era diferente das outras cadeiras do bar.
As cadeiras do bar eram cadeiras pequenas de alumínio,
ele destruiria elas apenas se apoiasse a mão em uma delas.
Ele estava em uma cadeira
que parecia ser feita com a mesma madeira das coisas do seu quarto do hotel,
uma cadeira enorme.
E ela viu que por trás daquela montanha humana, havia um homem normal.
Talvez até menos que normal, havia um homem com aparência
de um adolescente velho.
Depois de um tempo observando ele
ela chegou na conclusão que não conseguia dizer nada sobre ele.
Não era magro nem gordo,
cabeludo nem careca,
negro nem branco,
nada. Ele era um meio termo
entre tudo o que ela podia imaginar.
Chegou seu lanche.
Ela deu uma mordida e voltou a desenhar.
Por algum motivo, ela desenhava muito bem.
Por algum motivo sua técnica era perfeita para a caneta esferográfica preta,
e as linhas do papel, davam todo um charme ao desenho.
O balconista olhava para o desenho
com muita admiração
enquanto lavava alguns copos.
Ela desenhou o homem gigante em uma posição
como se ele fosse atacar o outro homem;
com os braços levantado,
e a mão enorme aberta.

Pelo jeito eles estavam em uma discussão
e o homem enorme tentava convencer o outro de algo
e o outro parecia simplesmente não se importar.
-Seu lanche vai esfriar desse jeito, menina.
Diz o balconista com sotaque.
Ela pára um pouco de desenhar,
e seu estômago agradece.
A rua começa a ficar movimentada, conforme o dia começa
pessoas de terno passam apressadas,
esbarram umas nas outras
e não param por nada.
Lilian possuia um dia nulo, sem nada pra fazer,
ela precisava de algo para matar seu tempo,
ela pensou em comer.
Podia comer e assistir TV,
mas ela ia acabar deprimida gorda e entediada,
sem contar que não estava afim de achar um outro quarto de hotel com TV.
Ela pensou em fazer amigos, mas logo ficou com preguiça.
Aí ela teve uma boa idéia,
ela pensou em terminar o desenho. Aí depois que ela terminasse
ela realmente não teria nada pra fazer,
mas até lá, ela estaria segura,
só quando terminasse
aí sim ela teria realmente algum problema pra solucionar.
Limpou a mão no guardanapo,
pegou a caneta, deu uma olhadinha no desenho,
e quando olhou em direção a mesa
percebeu que o homem enorme havia ido embora.
Por alguns minutos ela ficou olhando para o homem que havia sobrado na mesa.
Parecia normal, dois homens saem para beber e conversar,
um tem um compromisso e precisa ir embora e o outro fica mais um tempo de bobeira na mesa.
A parte estranha não era ter um homem sentado frente a uma cadeira gigante vazia.
A parte estranha é que havia um machado
com mais de um metro
encostado ao lado da cadeira enorme de madeira.
Ele havia ido embora e ela não havia notado um homem
do tamanho de um urso
passando por traz dela
em um corredor
com uma largura normal para pessoas normais,
pequeno para pessoas grandes
e minúsculo para ursos fantasiados de gente.
Não fazia sentido.
Ela olhou para o outro cara
ele tomava uma cerveja que parecia estar trincando
e fumava um cigarro agora,
com os olhos perdidos em algum lugar
entre as mais de dez garrafas que haviam na mesa.
A coerência estava deficiente.
Lilian não notava isso.
Ninguém nota.
Lilian só se lembrava de ter vivido naquele mundo,
e naquele mundo, o fato de um homem do tamanho de um urso
sumir de uma hora para outra
era uma coisa que apenas acontece
e não se questiona.
No nosso mundo, isso seria motivos para pessoas sensíveis ficarem loucas.
Mas o tempo todo a incoerência reina,
e em cada quina poderíamos achar um motivo para enlouquecer
cada universo tem um nível de incoerência com o qual ele está disposto a conviver.
... mas algo coçava no cérebro de Lilian.
As coisas começaram a ficar com um clima que de uma hora pra outra
iam desaparecer, como quando acordamos de um sonho.
(claro que eu nunca faria uma história cretina
onde no final as pessoas acordam e percebem que foi tudo um sonho)

Então houve um barulho
Tschhhhhhhhhhhhh, tsss, nhec vuuup, pá!
uma descarga, uma torneira, uma porta se abrindo
e um urso em forma de gente
tendo que virar de lado
para passar por uma portinha de correr
que ficava nos fundos do bar.
Ele passou, e Lilian viu seu rosto
e por alguns segundos,
ela sentiu que ele era o homem mais mau e durão da face da terra.
Barbudo como um Viking, cheio de cicatrizes,
um olhar feroz, que as pessoas de hoje em dia já não possuem.
Mas tudo isso tranquilizou Lilian, e vocês sabem por que?
Coerência. Senso de realidade. Tudo havia voltado.
Ele não havia desaparecido sem que Lilian percebesse,
ele apenas havia ido ao banheiro,
afinal, mesmo sendo um ogro, não existe bexiga que sobreviva a toda aquela cerveja!
Viu, o mundo tinha coerência... é, tinha... tinha sim.
Ela achou chato ficar olhando a vida alheia de dois homens
só por que um era gigante e o outro estranho. Acendeu um cigarro
ficou lendo os lanches que eram servidos lá
e pensando que todos botecos tinham uma placa idêntica
com as letrinhas saltadas amarelas, indicando "quanto estava o que".
O cigarro terminou, ela se levantou
pediu mais um café em um copo plástico
pagou com o cartão
pegou o caderno
foi devolver a caneta, mas o homem disse pra ela ficar com a caneta
-Fica c'ocê, de presente, Fia.
-Brigada.
Ela guardava a caneta, e o maço no bolso
quando o homem amigo do Viking foi ao balcão.
-Oi Ernandes, ficou quanto?
-Por conta da casa pr'ocê.
-Mas foram mais de dez cervejas, não é certo...
-Pro senhor é por conta da casa, não reclama.
-Hah, brigado Ernandes!
Ernandes voltou a lavar copos distraído
como se fosse normal, e
o homem estranho deu uma olhada para Lilian,
uma olhada funda, que invadiu sua alma
de uma forma profunda e ao mesmo tempo não invasiva
como se eles fossem irmãos.
Lilian ficou meio perplexa com tudo aquilo,
e totalmente perplexa quando viu ele indo em direção a mesa para pegar sua jaqueta
e percebeu que o homem urso não estava mais lá
e que não havia mais machado nem cadeira,
apenas um bocado de cervejas encima de uma mesa
com duas cadeirinhas de alumínio.
Ele saiu do boteco antes que ela pudesse se recuperar do choque.
E quando ela se recuperou,
se viu meio a um boteco
onde nada fazia muito sentido
onde o dono cometia suicídio financeiro e dava canetas
onde homens do tamanho de armários desapareciam
e por mais que nada fizesse muito sentido
ela ainda estava ali
e a vida continuava a fluir
e o dia estava apenas no começo.
Ela pegou o café...

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