Eu não entendo por que os autores insistem em narrar tanta coisa irrelevante.
Lilian saiu do boteco
respirou
se manteve equilibrada em dois pés
a gravidade continuava ativada
os carros continuava fazendo barulho
e a milhares de quilômetros no espaço
o sol continuava a explodir e iluminar o céu.
Mas eu não sinto nenhum prazer em narrar tudo isso...
Alias, eu, com a cara na areia
vendo o mar, não sinto prazer em narrar nada.
eu só sou uma coceira que cresceu no cérebro dela
conforme o dia foi passando, e ela é só uma coceira no meu.
Quer ver algo interessante?
Acelere seis horas.
Seis horas da minha cara na areia,
dos meus lábios rachados,
seis horas daquele ruido de mar,
seis horas que eu acompanhei Lilian passeando pela cidade
entrando em uma biblioteca, lendo livros estranhos,
dando bom dia para pessoas,
gastando dinheiro de um cartão de crédito em lanchonetes.
Seis horas passaram, o céu começa a escurecer
na decima sexta porta do Hotel Rebeka
um Viking grande ouve alguém batendo forte
três batidas que faziam sua portinha tremer.
Ele já sabia quem era.
Levantou-se vagarosamente,
seu quarto tinha móveis grandes,
tudo enorme, e nenhuma parede além da que estava a porta.
e ela se estendia para os lados, até um ponto onde uma lampada ao lado da porta
não podia mais iluminar
e o resto eram trevas.
Era uma cama solitária, com uma cabeceira solitária
e um homem solitário indo abrir a porta.
O homem do outro lado da porta
olhou com ódio para Solidão.
Ele segurava um outro homem pelos cabelos
por alguns segundos Solidão pensou que o outro homem fosse eu,
mas era só alguém com o cabelo parecido
e com o rosto totalmente desfigurado.
Ele já estava com o corpo mole, Solidão olhou para a porta
e viu que haviam marcas de sangue;
deduziu que seu irmão havia usado o rosto do outro homem para bater em sua porta.
-Entre, irmão...
O homem abriu um sorriso
e entrou, balançando o quase-cadáver que carregava consigo
como se fosse chapéuzinho vermelho levando uma cesta de doces.
Era estranho para os outros que um homem tivesse força para levar outro homem pelos cabelos
com tão pouco esforço, e tanta naturalidade.
Solidão fechou a porta e ficou olhando.
Perguntou:
-O que você quer?
Seu irmão sorriu, em resposta.
Sorriu, ergueu o homem sangrando, ficou por um tempo olhando para ele como se fosse algum espelho
frente a frente.
Tirou uma faca do bolso,
uma butterfly. Abriu ela, fechou, abriu...
Solidão, triste, olhava para a cena, para o desespero mudo
nos olhos do homem sangrando,
para o ódio feliz no olhar de seu irmão.
Então ele cortou a garganta
do homem que estava sangrando
para que ele não pudesse gritar (procedimento padrão).
Solidão assistiu o homem se contorcer, tentar se soltar
enquanto seu irmão apenas começou a descascar lascas de carne do rosto já desfigurado do homem
como se ele estivesse esculpindo algo em uma maçã
e começou a falar:
-Ora ora, meu bom irmão, eu estava passeando por aqui, vendo se eu encontrava algo divertido para fazer... Venho me sentindo muito forte ultimamente, imaginei que você também estivesse forte...
-E...?
-E ai eu pensei em te matar e roubar seus poderes. - ele disse, enquanto seu rosto começava a ser respingado pelo sangue do homem que ele estava esculpindo.
Solidão respirou fundo, a respiração de quem busca paciência...
-Você sabe que isso não existe no mundo real.
-É... é uma pena. Mas imagine se existisse! - Ele esculpia o rosto do homem no mesmo ritmo que falava - Seus poderes seriam meus! Eu poderia voar, soltar lasers, esmagar as pessoas com o meu machado gigante!
-Você sabe que eu não tenho esses poderes... Alias, você sabe que toda essa história de poder é uma grande besteira.
Nessa hora seu irmão parou de esculpir, parou na metade de uma tira de carne
o homem ainda se contorcendo, erguido ao ar, como um filhote de gato pingando sangue;
olhou bem devagar nos olhos de Minha Solidão,
havia algo doente no seu olhar,
ele abriu um sorriso.
O sorriso com o tempo se tornou uma risada,
uma risada que morreu abruptamente.
Sua voz tinha ódio, ele falou entre os dentes:
-Você pensa que é uma besteira. Seu poder, caro irmão é o que impede ele de enlouquecer. E se ele enlouquecer, eu finalmente poderei sair daqui, e ser livre. E eu terei algo pra fazer. Você sabe disso. Eu andei conversando com umas pessoas - então ele deu uma olhada para o homem que ele havia parado de mutilar, e voltou a mutilar e falar com muita calma e paz - Todos nós somos suicidas, caro irmão. Você é a solidão dele, mas ao mesmo tempo você é o que faz ele ter vontade de encontrar pessoas. Quanto mais forte você fica, maior é a chance de ele encontrar alguém.
-Você andou assistindo muita TV...
-Você nem imagina o quanto! Há! E veja só, eu sigo minha diretriz. Você se enfraquecendo aí, procurando companhia em qualquer canto, e eu procurando algo para fazer, algo para pensar. Mas eu estou cansado disso!
-Nós somos mais do que diretrizes irmão... Você devia dar uma volta ao ar livre e ter conversas agradáveis com alguém...
-Não! Eu vou acabar com isso de uma vez por todas! Eu vou ficar forte o suficiente para poder acabar com o tédio, a solidão, a angustia, os desejos, o vazio, tudo de uma vez. Não é lindo? - então ele abriu um imenso sorriso.
-As coisas não funcionam assim irmão... e por Deus, pare de cortar esse coitado! Já estou entediado de ver você torturando pessoas para passar o tempo, Tédio! - disse Solidão com sua voz cavernosa, que ecoava por todo aquele vazio do quarto dele.
Tédio soltou ele, o homem caiu no chão,
ainda vivo.
-Quem disse que isso é uma pessoa? - Seu sorriso só aumentava.
-O que você quer dizer com isso?
-Uma pessoa já teria morrido. Há muito tempo.
Solidão fez silêncio, tentando entender o ponto de seu irmão.
-Há, não, caro irmão. Não. Esse aqui é diferente, e daqui pra frente, as coisas vão mudar um bocado.
Solidão andou até o homenzinho
abaixou, olhou seu rosto bem de perto
não havia sobrado quase nada do que era antes seu rosto.
Havia sangue por todo o seu corpo,
sangue coagulado já,
ele devia estar sendo torturado por algumas horas já.
Mas Solidão viu que a borda da carne que havia sido arrancada de seu rosto, começava a se reconstituir.
Quando Solidão olhou para o Tédio,
ele estava entediado,
brincando de cortar seu braço e ver cicatrizar.
-Somos todos suicidas, irmão. Todos. Crescemos, ficamos fortes, e quanto mais fortes ficamos, maior é a vontade dele de acabar com a gente.
-Isso não é verdade, ele aprendeu a lidar comigo.
-Quanto mais forte você fica, mais ele busca sair de casa e ver os amigos, e então, mais fraco você fica.
-e...?
-E aí que tem alguém que quanto mais forte fica, mais forte fica.
Ele apenas sorriu para a Minha Solidão, olhou para o homem sangrando e foi embora,
deixou os dois a sós.
Solidão entendeu que,
quem quer que fosse o homem, sem rosto no chão,
era um deles
e ele teria que esperar seu rosto reconstituir para descobrir quem era.
Solidão temeu por mim.
...um grande covarde a minha solidão.
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