sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Mas nada... - Capítulo 11

... é o suficiente, nunca:
Ela precisava estragar tudo.
-Mas... quem é você, afinal?
-Deus.
Seus olhos pararam de olhar para o céu azul
e olharam para mim, recolhendo roupas.
Eu olhei pra ela, e percebi que ela me olhava sério. Eu falei aquilo
como eu falo tudo
da mesma forma que eu falo pra minha mãe que eu vou "encher a cara até vomitar em um banheiro sujo no meio da noite", quando ela me pergunta pra onde eu vou.
Que nem minha mãe ela sorriu, e disse:
-... bobo.
Maldito Freud.
-Você costuma chamar de bobo quem você não conhece?
-Você costuma ser resgatado no meio do corredor e fingir que não aconteceu nada?
-Já reparou como o argumento das mulheres em uma discussão sempre tem uma falha de coerência mas mesmo assim elas sempre ganham a discussão porque falam o que quer que seja com mais convicção?
-Oi?
ela fez cara de surpresa, eu jogava a terceira peça de roupa em cima do ombro direito.
-Eu sinto como se eu já te conhecesse faz tempo. - ela disse, pra estragar tudo de novo.
-Eu sinto que você anda assistindo muitos filmes. - Eu disse, pra ser cretino e quebrar o clima.
Lilian sorriu, e começou a andar pelo terraço.
O acaso do jardim que cercava toda aquela área era de um bom gosto espetacular.
Ela foi andando em direção a beirada, onde havia uma planta com a folhagem mais escura, e umas folhas bem fininhas e compridas.
Depois andou na direção de um Lírio-da-Paz, e se você que está lendo esse livro não sabe o que é um Lírio-da-Paz,
trate de ir no Google e descobrir.

A gente podia passar o dia todo conversando sobre aquele jardim
ou sobre a tarde bonita
ou sobre a noite bonita,
ou a gente podia ir pra cama
transar até doer,
até não restar um fio de força em nossos músculos
depois a gente passava o dia todo conversando sem roupas
e eu dormia com o dedo em cima da pintinha que ela tinha no peito direito.
Ou eu podia dizer pra ela que eu sou Deus
e estragar tudo.

(Esse é o capitulo no qual as personagens vão pra cama e você descobre o que é o Lírio-da-Paz.
Bata uma punheta e vá para o próximo capítulo.)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Uma nova partida - Capítulo 10

Ela me levou para a cama dela, eu nem estava mais tão cambaleante assim
pra dizer a verdade
mas estava tão bom apoiar nela...
Me deitou na cama e disse
-Espera que eu vou buscar ajuda.
Eu segurei sua mão
-Não, fica...!
-Eu já venho.
Teto branco.
Travesseiro macio.
Ajeitei meus pés, virei o rosto de lado,
vi a porta escancarada
e ouvi seus passos indo até o começo do corredor.
Ouvi barulho, e a voz dela chamando
por alguém, alguém pra ajudar
tem um moço passando mal,
alguém?
então os passos voltam.
Voltam apressados, firmes,
e meu sorriso volta, trêmulo.
-Não achei ninguém, o que você tá sentindo, quer um copo de água?
-Não, eu to bem, relax...
-Você já teve isso antes? Quer comer alguma coisa? Qual seu nome?
-Vitor. Meu nome é Vitor.
Eu pisquei bem forte,
abri os olhos, deixei o rosto dela entrar em foco.
É estranho como aquele brilho penetrou a minha mente
e como o silêncio se fez.
Eu me sentei na cama, ainda olhando para aqueles olhos
e uma música desconhecida tocava na minha cabeça.
Eu quis vinho, luar e ela.
-Eu to bem, brigado, deve ter sido só minha pressão...
-Eu to preocupada, você já teve isso antes?
-Hah... é, as pessoas tem esse costume de se preocupar.
Ela abriu um sorriso, mas me olhou com uma cara estranha.
-Onde tem água aqui?
-A primeira porta do corredor à esquerda é um refeitório... tem só que ver se tem copo lá.
Ela foi. Seguiu o corredor. Abriu a porta. Tinha um copo na pia.
Copo de plástico, verde, com umas ondulações de enfeite.
Copo sujo. Bucha azul, detergente amarelo, água correndo.
Ela encheu de água, jato forte que espirrou pra todo lado.
Aí percebeu que também estava com sede, e bebeu no copo.
Aí ela percebeu que tinha um galão de água mineral, ao lado da pia.
E ela encheu de novo o copo.
Aí ela percebeu que havia bebido naquele copo,
e tinha que lavar de novo, mas ela não podia jogar água do filtro na pia,
então ela tomou mais um copo de água...
é bom assim, bem hidratada, cremes hidratantes não hidratam.
Ela lavou o copo, dessa vez com menos cuidado, é sempre assim...
Aí ela encheu o copo de água, achou um pano para secar as mãos...
Os passos no corredor voltaram,
ela voltou,
olhou pra mim da porta.
Eu estava na cama, com a mão apontada pra cima, um dedo esticado,
contando os pontinhos no teto e lembrando de uma história triste que me contaram um dia.
-Cê tá bem?
-Sabia que dá pra morrer tomando bastante água de uma vez?
-Ah é?
Ela se aproximou, sentou ao meu lado na cama, eu parei
de contar os pontinhos do teto.
Ela deu o copo pra mim, seus lábios estavam vermelhos, molhados,
uma ponta de um dedo dela tocou na minha mão ao dar o copo,
seus dedos estavam gelados.
Seus olhos enormes, me estudando
enquanto eu bebia água.

Lilian pensava que era estranho cuidar de mim.
Tinha alguma coisa estranha, alguma coisa como se eu não precisasse ser cuidado
como se o super-homem pedisse ajuda pra ela abrir uma lata de picles.
... Mas lá estava ela
-Você comeu alguma coisa? Quer comer?
-Quero um cigarro... Tem um cigarro?
Ela olhou, como que pensando se seria certo
dar um cigarro para quem estava caído sem respirar a alguns instantes.
Ela alcançou o maço no bolso, era Free.
-Que bom, você fuma o mesmo cigarro que eu. - eu sorri.
Ela sorriu de volta.
Eu acendi.
Lilian acendeu.
E nós fumamos felizes para sempre.
-Deve ter sido a sua pressão.
-Provável, provável.
-Eu te vi hoje de manhã, aqui no bar.
-É?
-É. Você e um cara grande.
-Ah sim...
-É normal que as pessoas sejam daquele tamanho?
-Hahaha, acho que não. Ele comeu bastante feijão quando era menor, deve ser isso.
-Ah...
-Eu acho que eu lembro de ter te visto. Você estava com um caderno, escrevendo alguma coisa, não é?
-Desenhando.
-Você desenha? - eu perguntei, não sei se foi por interesse real na resposta... talvez fosse um interesse na voz dela, ou talvez eu não quisesse silêncio.
-Ah, mais ou menos... acho que sim.
-Haha, como assim?
-É a primeira vez que eu desenho hoje (acho)... - então ela olhou para o chão com cara de triste/pensativa.
-Acha? Hah, o que você faz da vida, afinal? - Por que eu havia perguntado aquilo?
-Ah, eu como em bares pagando com um cartão de crédito infinito, durmo, acordo, e resgato pessoas caídas no corredor. Hahaha!
-Hahahaha, desculpa, eu não costumo ser uma pessoa caída no corredor, foi uma situação um bocado... estranha. Eu estou te dando trabalho?
-Ah não, de forma alguma, eu tava mesmo sem nada pra fazer hoje a tarde...
-Então nesse caso eu acho que você não vai se importar se eu cair no corredor mais vezes, né?
Ela riu, mas algo na risada pareceu ter ficado desconfortável com o comentário.
Me senti na obrigação de salvar a situação,
-Ei, qual é mesmo seu nome?
-Lilian.
-Então Lilian, eu já estou melhor, eu estava indo recolher uma roupa, lá no terraço. Você já foi lá?
-Não. Tem terraço?
-Tem sim.
Levantei em um pulo, contornei a cama,
dei
a mão
pra ela
levantar.
E ela deu a mão pra mim.
Ah...
Aí a gente foi até o fim do corredor.
Não parecia, mas haviam um bocado de portas naquele corredor, só agora Lilian estava percebendo isso
e no fundo do corredor, uma porta de ferro à esquerda, com parafusos soldados, com um clima de segurança máxima em meio aquelas portas velhas de madeira
chamou a atenção da nossa protagonista.
mas eu abri uma porta que ficava do lado oposto
de madeira, e subi por uma escada apertada, com ela atrás de mim
e seus olhos curiosos varrendo tudo.
A escada era grande, e fazia uma curva,
e depois da curva, vinha luz azul
azul de dia bonito
de dia que quer ser vivido
e vinha junto com o céu visto pelo vidro ondulado de uma porta de alumínio.
Eu abri a porta
e senti que se eu olhasse pra trás Lilian viraria uma estátua de sal.
Mas mesmo com aquele dia lindo e azul, eu precisei olhar pra trás e correr esse risco.
-Está bonito o dia hoje...
-É. - ela respondia
com seus olhinhos fascinados, olhando aquele lugar tão distante da cidade e do barulho,
aquela área imensa, cercada por um mini-jardim precário, toda cheirando a natureza e a roupa limpa.
As roupas balançando ao vento pareciam a bandeira daquele planeta
Lilian pôs a mão no coração
pronta para entoar o hino nacional do Hotel Rebeka.
Eu?
Eu sorria...

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O que eu diria se eu fosse Vinícius - Capítulo 9

Algo em mim estava morto
algo nela estava tão vivo.

Solidão deixou o corpo se recompondo na cama
e apareceu correndo, desajeitado
me achou na praia, caído, minha mente longe,
meu coração frio, duro
e por baixo da minha pele um deserto havia crescido
e a seca destruía tudo.
Solidão tentou falar comigo,
me sacudiu,
mas não havia luz em meus olhos.
Ele me pegou em seus braços enormes, do tamanho de troncos de arvores
como se eu fosse um bebe desprotegido e caminhou comigo
em direção ao Hotel Rebeka.
No caminho, as cores enfraqueciam.
As pessoas iam andando mais devagar
as árvores da rua iam morrendo
e sem que ninguém percebesse
o mar ia subindo e engolindo a praia, aos poucos,
e aos poucos as beiras daquela imensa cidade
começavam a simplesmente se desfazer
como se fossem de areia o tempo todo.


Solidão começou a andar mais rápido,
conforme sentiu suas forças indo embora.


O homem que pedia dinheiro no semáforo aquele dia não havia comido, mas de repente estava sem fome.
O homem do bar havia parado de limpar um copo na metade, deixou lá, a torneira aberta, o copo ensaboado parado nas mãos, e aos poucos a água da torneira ia diminuindo o fluxo.
As pessoas que andavam, e conversavam, e esbarravam o tempo todo, agora estavam paradas olhando para o chão, sem saber pra onde ir.
Tédio em uma loja de ferramentas estava testando os machados nas pessoas que ele criava, mas de repente seus machados pareciam não estar mais afiados, e as pessoas já pareciam não querer mais resistir.
Só uma pessoa não sentia nada de especial além de sonhos inquietos.
Seus lábios tinham vida. Tocavam aquele travesseiro sortudo
que quase se sentia ofendido por tamanha maciez.
Sua pele não ressecava, sua respiração era constante
ela tinha um pouco de cola de fita crepe na têmpora.
Ela tinha tudo que eu precisava pra me sentir bem,
mas entre eu e ela
havia distância
uma distância que diminuía conforme um Viking subia as escadas apertadas
passava pela porta apertada
cambaleava para o lado
quase caindo
e deixava de existir.
E o tempo todo
eu estava sozinho
caído no corredor.


De repente, já não havia mais solidão, dor, medo, nada
e toda a luz começou a ir embora e me abandonar.
Aos poucos minha respiração finalmente cessou.
































































...






barulho?...
Ela abriu os olhos de bom humor.
Seus olhos brilhavam, e um sorriso imenso se abriu
mostrando uma coleção de dentes branquinhos
que só os mais sortudos podem imaginar.


Ela tinha um livro para ler.
Ela tinha um dia para viver.
Ela tinha uma vida toda para consumir.
E sonhos e desejos e vontades.
Levantou em um pulo.
Sentiu vontade de um banho, mas não sabia se havia banheiro no hotel,
resolveu ir perguntar pro moço da recepção.














































O barulho




da minha mente




finalmente terá fim.




Essa é minha ultima respiração, e logo








Meu coração irá parar mandar oxigênio para o meu corpo.


















.... então morrer é assim?...


































































































































Lilian se assusta. Se assusta ao abrir a porta e ver um corpo caído ao chão.
Por alguns segundos ela não sabe o que fazer,
olha ao redor mas não há ninguém para ajudá-la.
Seus pés descalços e macios
tocam o chão
e o toque de seus pés macios faz com que o chão se torne duro.
E seus olhos curiosos espreitam tudo ao redor,
seus olhos grandes e brilhantes
fazem com que o corredor volte a ter brilho e cor.
Ela contorna meu corpo para ver meu rosto.
Ela me reconhece!
Sim, o homem do bar, amigo do Viking!
Sua boca abre de surpresa, mas ela faz silêncio
fica de joelhos, põe a mão no chão
encosta o seu rosto no chão
em frente ao meu
vê que meus olhos estão abertos e sem vida
e por um momento um calafrio percorre todo o seu corpo.
"Diz que não está morto
diz que está respirando
não! morto não!" ela pensa.
Então ela olha para meu corpo,
para ver se eu estou respirando.


... não meu bem, eu não estou respirando...


Seus olhos se voltam para os meus novamente
ela toca o meu rosto.
Um toque.
Um toque comum, que qualquer pessoa idiota podia ter feito.
Uma coisa normal
tão normal quanto tudo o que aconteceu na sua vida desde que você acordou
até você estar lendo essa frase.
Tão normal quanto o céu.
Mas em algum lugar que eu caia
suas mãos me alcançaram
e alguma vida que estava escondida
na terra rachada daquele deserto
saiu.
Saiu e me fez encher os pulmões de ar
e piscar
e ver.
Ah.. e ver.
Morrer é isso?
Eu senti uma pressão na cabeça
e ouvi um zumbido
e minha vista ficou preta e voltou.
e eu só fui ouvir o que ela me dizia depois de alguns segundos.
E só fui entender depois de alguns segundos mais.
Ela perguntava desesperada
-Moço, você tá bem?! Moço! Moço, o que você tem, você tá me ouvindo?!
Eu mechi a boca
mas não saiu nada.
e eu nem me importei,
porque eu percebi
que eu estava de repente feliz
por estar vivo
e por não ter morrido
e por ouvir e ver aquele rosto lindo.


Eu apertei os olhos,
fechei a mão,
abri,
me mechi.
me apoiei em um dos braços pra me por sentado,
ela me ajudava,
me segurava com as duas mãos pelo ombro.
Eu engoli,
engoli seco.
Abri os olhos,
ela estava bem na minha frente
eu abracei ela.
Eu quis chorar.
Achei que eu fosse chorar
nem sei por que,
mas não veio a lágrima.
apenas veio o calor do corpo dela
e eu apertei mais.
Depois de um tempo ela me abraçou também.


... Sim, eu estava vivo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O que acontece - Capítulo 8

Algum dia
alguém percebe que existe um erro de intensidade.


Lilian ficou cega pelo reflexo do sol nos carros
e ela seguiu à direita, passando pela porta do Hotel Rebeka
e aos poucos sua vista foi voltando, e aquele pontinho verde de ceguidão
foi diminuindo.


Ela subiu uma daquelas ruas
que são uma subida tão subida,
que se você estica a mão pra frente
a ponta dos seus dedos toca o chão,
daquelas subidas que parecem que foi deus te sacaneando
daquelas que...
... acho que você já entendeu, uma baita subida.
No fim da baita subida, tinha um lugar
cercado por um muro branco
vazado
e lá dentro tinha uma biblioteca.
Lilian demorou um pouco para concluir que era uma biblioteca,
eu não culpo ela por isso.
Era como se de repente ali naquela subida
houvesse uma linha imaginária
que separasse totalmente o centro
do bairro, ou de algo até mais calmo que um bairro.


Ela andou reto, virou a direita, seguiu por muros baixos
por casas que olhavam para ela de forma amistosa
por ruas que faziam você vez o mundo pelos olhos de uma criança
cheias de velhinhos que ficavam nos portões
distribuindo "bom dia" pra quem passava.
Aí ela virou de novo.
Por uma outra rua, uma descida moderada,
com sombra de árvores,
ela imaginava como seria o dia-a-dia daqueles velhinhos
que deram bom dia para ela.
Ela virou a direita na praça,
desviou de algo que ela achou que era um coco,
mas que na verdade era só uma folha seca.
Lá na praça tinham algumas pessoas que sabiam olhar nos olhos.
Eu gosto daquela praça, e daquelas pessoas que sabem olhar nos olhos,
Lilian também.
Ela pensa nisso, ela sente isso. Ela pensa que eu gosto daquela praça,
e depois pensa "quem é eu?", e depois chega na conclusão
de que ela não está pensando nada com nada, e
vira a direita novamente.
Dessa vez tem uma subidinha bem breve e tão ingrime quanto a primeira.
E no final dessa subidinha, está a biblioteca
novamente.
Ela acha que isso é um sinal
para ela entrar na biblioteca...
... eu acho que quando você vira à direita, depois à direita depois à direita,
você acaba parando no mesmo lugar, mas o que eu acho não importa.


Na biblioteca Luzia sentia um gosto amargo na boca.
Ela começa a remexer na sua bolsa
procurando uma bala de maracujá que ela tinha comprado
à alguns dias atras, de um menino com problema de dicção, no ônibus.
Ela acha a bala, e olha uma menina estranha entrando.
A menina olha tudo, para em cada quadro de avisos,
em cada estante de panfletos,
até mesmo no bebedouro de água do lado da entrada
e no vaso de Lírios-da-Paz.
A menina caminha até o balcão,
para na frente de Luzia, e fica olhando pra tudo em volta,
na parede atras de Luzia,
sem se importar de fato com o silêncio.
-Pois não, quer alguma coisa aqui filha?
Luzia era simpática, tinha um jeito de gente bruta que é incapaz de maldade.
Sei lá por que, mas ela sempre me lembrou aquela enfermeira legal do hospital...
... de qualquer forma, Lilian respondeu:
-Oi, é... como faz pra alugar um livro aqui?
-Tem que trazer comprovante de residencia e algum documento com foto.
-Ahm... Eu moro no hotel ali descendo a rua... como eu faço?
-Não faz.
Lilian ia se sentir ofendida, mas a mulher disse:
-Quer bala de maracujá?
Lilian aceitou, a bala era boa.
-Você pode ficar lendo aqui.
-Não precisa de carteirinha?
-Não, carteirinha é só se você quiser levar o livro, mas como você disse que mora no hotel lá embaixo, fica fácil vir aqui pra ler os livros.
-Ah, brigada. - e ela deu um sorriso, e percebeu o que eu disse sobre Luzia.
Ela foi entrando na sessão de livros,
não tinha ninguém lá além dela.
Ela se sentiu feliz sem saber por que... Desde que ela subiu aquela rua
a felicidade se apossou dela,
como se apossa de uma criança que come muito açúcar.
Ela começou a cantarolar, e brincar de labirinto entre aquelas estantes
vez em vez ela parava para olhar algum livro.
Ela cantava
"está tão tarde,
não é hora de sair
pra ver o mar?


me telefona
não é hora de sair,
insiste mesmo assim"
E enquanto isso, eu chegava em uma praia
perdida em algum lugar da minha memória.
Ela abaixou, pegou um livro qualquer
capa de couro, verde escura.
Ela estava feliz demais pra ver qual livro era,
apenas caminhou com ele nas mãos, pra fora das estantes
em direção a uma parte onde tinham algumas mesas redondas, com cadeirinhas
e alguns pufes espalhados de forma aleatória.
Se jogou em um dos pufes
abriu o livro
não viu o nome do livro, nem do autor
apenas abriu e começou a ler
"...ele levantou e foi até a janela, ficou com o olhar perdido lá em baixo, o branco das casas. Aquilo costumava deixar ele até feliz. O bairro podia estar em decadência, mas enquanto os muros estivessem brancos todos achariam que está tudo bem. Então ele olhou pro lado e Clarice estava lá com o salgadinho na mão, encarando ele.
-Então... o que você faz?"
E ela continuou, conforme as horas foram passando.
Ela continuou enquanto o sol atingia o topo do céu
e as sombras iam encolhendo,
enquanto um homem correndo lá perto
era atacado de surpresa por um maníaco
que enfiava uma faca no seu estomago,
enquanto eu caia com o rosto rosto na areia
e enquanto um deserto árido e indestrutível
ia engolindo toda a criação.
Depois de tudo isso, ela sentiu fome, deixou o livro encima da mesa,
e saiu da biblioteca,
antes disso deu um sorriso para Luzia,
que estava parada perdida em pensamentos olhando em direção à porta.
Saiu da biblioteca, acendeu um cigarro, e olhou para aquela descida imensa.
Ela queria comida de verdade, lembrou que no boteco ao lado do hotel
serviam almoço.
Provavelmente não era comida limpa, mas devia ser comida boa.

Ela andou em direção,
e constatou
que descidas ingrimes são piores do que subidas ingrimes
e que quando se está no centro de qualquer cidade
suas energias são lentamente sugadas,
como se o todo daquele movimento todo
cobrasse um dízimo da sua vontade de viver.
Apagou o cigarro.
Ela já não sentia mais vontade de cantarolar,
apenas chegou no boteco,
pediu um prato feito, de sete reais,
com muita carne, muita gordura arroz duro
e feijão muito bem temperado.
Sentou numa mesa de plástico,
encheu a barriga.
Depois pensou quanto tempo teria que ficar ali até que tivesse forçar
de encarar aquela subida para continuar lendo o livro.
...
Chegou na conclusão que era melhor pensar nisso deitada,
pagou com o cartão, subiu lentamente as escadas,
estava fresco o clima dentro do hotel, estava silencioso,
o homem da recepção não estava lá
ela entrou na portinha, se arrastou pelo corredor.
Abriu a sua porta com a sua chave,
só mais alguns passos,
e finalmente.
Ela caiu de cara na cama.

Sonhou. Sonhou com um homem caído com a cara na areia e com uma cidade morrendo.

Algumas horas depois ela acordou com algum barulho no corredor
de alguém batendo na porta ao lado
e se sentiu disposta a encarar aquela subida novamente.
Ao lado da cama
havia um garrafa de água vazia, e de alguma forma
isso fez ela lembrar do seu caderno.
Ela devia ter esquecido ele em algum lugar,
provavelmente no bar ou na biblioteca.

domingo, 11 de setembro de 2011

Um pouco de romance - Capítulo 7

Eu não entendo por que os autores insistem em narrar tanta coisa irrelevante.
Lilian saiu do boteco
respirou
se manteve equilibrada em dois pés
a gravidade continuava ativada
os carros continuava fazendo barulho
e a milhares de quilômetros no espaço
o sol continuava a explodir e iluminar o céu.
Mas eu não sinto nenhum prazer em narrar tudo isso...
Alias, eu, com a cara na areia
vendo o mar, não sinto prazer em narrar nada.
eu só sou uma coceira que cresceu no cérebro dela
conforme o dia foi passando, e ela é só uma coceira no meu.
Quer ver algo interessante?
Acelere seis horas.
Seis horas da minha cara na areia,
dos meus lábios rachados,
seis horas daquele ruido de mar,
seis horas que eu acompanhei Lilian passeando pela cidade
entrando em uma biblioteca, lendo livros estranhos,
dando bom dia para pessoas,
gastando dinheiro de um cartão de crédito em lanchonetes.
Seis horas passaram, o céu começa a escurecer
na decima sexta porta do Hotel Rebeka
um Viking grande ouve alguém batendo forte
três batidas que faziam sua portinha tremer.
Ele já sabia quem era.
Levantou-se vagarosamente,
seu quarto tinha móveis grandes,
tudo enorme, e nenhuma parede além da que estava a porta.
e ela se estendia para os lados, até um ponto onde uma lampada ao lado da porta
não podia mais iluminar
e o resto eram trevas.
Era uma cama solitária, com uma cabeceira solitária
e um homem solitário indo abrir a porta.

O homem do outro lado da porta
olhou com ódio para Solidão.
Ele segurava um outro homem pelos cabelos
por alguns segundos Solidão pensou que o outro homem fosse eu,
mas era só alguém com o cabelo parecido
e com o rosto totalmente desfigurado.
Ele já estava com o corpo mole, Solidão olhou para a porta
e viu que haviam marcas de sangue;
deduziu que seu irmão havia usado o rosto do outro homem para bater em sua porta.
-Entre, irmão...
O homem abriu um sorriso
e entrou, balançando o quase-cadáver que carregava consigo
como se fosse chapéuzinho vermelho levando uma cesta de doces.
Era estranho para os outros que um homem tivesse força para levar outro homem pelos cabelos
com tão pouco esforço, e tanta naturalidade.
Solidão fechou a porta e ficou olhando.
Perguntou:
-O que você quer?
Seu irmão sorriu, em resposta.
Sorriu, ergueu o homem sangrando, ficou por um tempo olhando para ele como se fosse algum espelho
frente a frente.
Tirou uma faca do bolso,
uma butterfly. Abriu ela, fechou, abriu...
Solidão, triste, olhava para a cena, para o desespero mudo
nos olhos do homem sangrando,
para o ódio feliz no olhar de seu irmão.
Então ele cortou a garganta
do homem que estava sangrando
para que ele não pudesse gritar (procedimento padrão).
Solidão assistiu o homem se contorcer, tentar se soltar
enquanto seu irmão apenas começou a descascar lascas de carne do rosto já desfigurado do homem
como se ele estivesse esculpindo algo em uma maçã
e começou a falar:
-Ora ora, meu bom irmão, eu estava passeando por aqui, vendo se eu encontrava algo divertido para fazer... Venho me sentindo muito forte ultimamente, imaginei que você também estivesse forte...
-E...?
-E ai eu pensei em te matar e roubar seus poderes. - ele disse, enquanto seu rosto começava a ser respingado pelo sangue do homem que ele estava esculpindo.
Solidão respirou fundo, a respiração de quem busca paciência...
-Você sabe que isso não existe no mundo real.
-É... é uma pena. Mas imagine se existisse! - Ele esculpia o rosto do homem no mesmo ritmo que falava - Seus poderes seriam meus! Eu poderia voar, soltar lasers, esmagar as pessoas com o meu machado gigante!
-Você sabe que eu não tenho esses poderes... Alias, você sabe que toda essa história de poder é uma grande besteira.
Nessa hora seu irmão parou de esculpir, parou na metade de uma tira de carne
o homem ainda se contorcendo, erguido ao ar, como um filhote de gato pingando sangue;
olhou bem devagar nos olhos de Minha Solidão,
havia algo doente no seu olhar,
ele abriu um sorriso.
O sorriso com o tempo se tornou uma risada,
uma risada que morreu abruptamente.
Sua voz tinha ódio, ele falou entre os dentes:
-Você pensa que é uma besteira. Seu poder, caro irmão é o que impede ele de enlouquecer. E se ele enlouquecer, eu finalmente poderei sair daqui, e ser livre. E eu terei algo pra fazer. Você sabe disso. Eu andei conversando com umas pessoas - então ele deu uma olhada para o homem que ele havia parado de mutilar, e voltou a mutilar e falar com muita calma e paz - Todos nós somos suicidas, caro irmão. Você é a solidão dele, mas ao mesmo tempo você é o que faz ele ter vontade de encontrar pessoas. Quanto mais forte você fica, maior é a chance de ele encontrar alguém.
-Você andou assistindo muita TV...
-Você nem imagina o quanto! Há! E veja só, eu sigo minha diretriz. Você se enfraquecendo aí, procurando companhia em qualquer canto, e eu procurando algo para fazer, algo para pensar. Mas eu estou cansado disso!
-Nós somos mais do que diretrizes irmão... Você devia dar uma volta ao ar livre e ter conversas agradáveis com alguém...
-Não! Eu vou acabar com isso de uma vez por todas! Eu vou ficar forte o suficiente para poder acabar com o tédio, a solidão, a angustia, os desejos, o vazio, tudo de uma vez. Não é lindo? - então ele abriu um imenso sorriso.
-As coisas não funcionam assim irmão... e por Deus, pare de cortar esse coitado! Já estou entediado de ver você torturando pessoas para passar o tempo, Tédio! - disse Solidão com sua voz cavernosa, que ecoava por todo aquele vazio do quarto dele.
Tédio soltou ele, o homem caiu no chão,
ainda vivo.
-Quem disse que isso é uma pessoa? - Seu sorriso só aumentava.
-O que você quer dizer com isso?
-Uma pessoa já teria morrido. Há muito tempo.
Solidão fez silêncio, tentando entender o ponto de seu irmão.
-Há, não, caro irmão. Não. Esse aqui é diferente, e daqui pra frente, as coisas vão mudar um bocado.
Solidão andou até o homenzinho
abaixou, olhou seu rosto bem de perto
não havia sobrado quase nada do que era antes seu rosto.
Havia sangue por todo o seu corpo,
sangue coagulado já,
ele devia estar sendo torturado por algumas horas já.
Mas Solidão viu que a borda da carne que havia sido arrancada de seu rosto, começava a se reconstituir.
Quando Solidão olhou para o Tédio,
ele estava entediado,
brincando de cortar seu braço e ver cicatrizar.
-Somos todos suicidas, irmão. Todos. Crescemos, ficamos fortes, e quanto mais fortes ficamos, maior é a vontade dele de acabar com a gente.
-Isso não é verdade, ele aprendeu a lidar comigo.
-Quanto mais forte você fica, mais ele busca sair de casa e ver os amigos, e então, mais fraco você fica.
-e...?
-E aí que tem alguém que quanto mais forte fica, mais forte fica.
Ele apenas sorriu para a Minha Solidão, olhou para o homem sangrando e foi embora,
deixou os dois a sós.
Solidão entendeu que,
quem quer que fosse o homem, sem rosto no chão,
era um deles
e ele teria que esperar seu rosto reconstituir para descobrir quem era.

Solidão temeu por mim.

...um grande covarde a minha solidão.

sábado, 10 de setembro de 2011

O lado de dentro - Capítulo 6,5

Eu acordei de sonhos estranhos. Perturbadores.
Sentindo gosto de sangue
sentindo cheiro de sono
pescoço virado, doendo
deitado de bruços
no Hotel Rebeka.
Eu estava com cortes pelo corpo todo
a areia fez com que as dobras das minhas pernas ardessem
eu fiz que ia voltar a dormir,
mas a ideia de voltar a sonhar
fez com que eu realmente quisesse levantar.
Então eu levantei.
Levantei, fumei um cigarro
e não pude sentir a fumaça ir para a minha boca.
Traguei mais forte
as coisas começaram a ficar mais reais.
Era final de madrugada, e eu já não lembrava como era
me sentir descansado.

Abri a porta, olhei para aquele corredor apertado
cheio de portinhas,
aqueles quartos cheios de hospedes...
pensei em cada um de seus habitantes.
Pensei em ir no quinze, conversar com...
Esqueci o nome dela.
Mas sempre penso nela com carinho...
Qual o nome...?
Lilian! Isso, Lilian...
Pensei em chamar ela pra ir pro bar comigo...
Havia luz saindo pela fresta da porta dela,
ela devia estar acordada.
Mas acabei indo para a porta ao lado
e chamando minha solidão pra me acompanhar.
Bati na porta de leve
rapidamente a porta abriu,
Minha solidão era grande, aquela manhã.
Minha solidão parecia um viking mau.
-Vamos tomar umas cervejas.
Eu estava me sentindo estranho
não me sentia sozinho, ao lado daquele viking gigante
mas... estava vazio.
O sol fraco, matinal
bateu no meu rosto, assim que eu desci a escada
e eu acendi mais um cigarro
naquela bituca em brasa que eu estava fumando
-Mais um? - Minha solidão perguntou
Eu terminei de acender
dei um trago profundo
deixei que a fumaça saisse
encarei ele, e perdi a vontade de ser grosso,
apenas fui em direção ao bar da esquina.
-O que foi, aconteceu algo?
-Eu me sinto estranho...
-Estranho... como?
-Não importa.
A cerveja, ela estava estranha. Não era cerveja de verdade,
deixava a boca com gosto de café velho.
Eu quis fazer um sol agradável,
em um céu realmente bonito,
mas não estava funcionando, eu continuava sentindo um vazio.
-Você devia namorar...
-Já conversamos sobre isso, não fode.
-É normal que você se sinta vazio, sua vida está vazia.
-Como vazia?!
-O que você fez hoje?
-Eu andei, encontrei alguns amigos, a gente conversou, jogou um tempo fora, e eu resolvi dar uma corrida no caminho de volta pro hotel.
-...Você não entende...
-...E o que eu não entendo?
(Nessa hora Lilian entrou no bar)
-Olhe o meu tamanho. Olhe a minha força. Eu sou um cara mau e grande. Eu sou um Monstro. Mas eu estou bem comigo.
-E...?
-E aí que isso está errado.
-O que porra você quer dizer, qual seu ponto?
-Que você finge que essa solidão imensa é uma escolha, quando na verdade isso é o que você é, e que se você pudesse escolher ser outra coisa, você seria.
Eu pensei.
Pensei, olhei, senti a rua fervendo de pessoas.
Olhei Lilian sentada lá...
... Ela levantou, foi pegar um papel
e eu quis ela.
Eu fiquei um tempo olhando para a rua
e pareceu que eu conhecia todos os rostos que passavam
pela porta daquele boteco, rosto de gente que sabe viver
rosto de quem esta indo para algum lugar.
Solidão começou a falar novamente
mas eu não conseguia ouvir nada,
estava concentrado em um casal que passava
não dava pra ver direito o rosto da menina
mas eu pude jurar que ela era uma ex-namorada minha
que havia parado de falar comigo há muito tempo atrás.
-...E aí talvez uma guerra comece, ou talvez suas dívidas te engulam
ele gesticulava amplamente, continuou
- e você então vai perceber que enquanto você combateu seu tédio...
Parou por um momento, olhou para fora do bar
-Você não está prestando atenção, não é?
-Eu juro que estou tentando, é que passou uma...
-Vou ao banheiro.
E eu fiquei lá.
Olhei Lilian. Ela comia seu lanche, de forma linda,
com prazer.
Comer talvez seja um dos prazeres mais intensos
dentre os que eu  me permito sentir, por esses dias...
Eu acendi mais um cigarro, a minha vontade de fumar
o meu aperto no estomago
não queria passar
aquela manhã.
Haviam várias garrafas na mesa,
queria eu ter bebido tudo aquilo...
não que fosse fazer alguma diferença
mas eu queria mesmo assim.
Dei alguns goles no meu copo,
continuei com gosto de café velho na boca.
Eu me sentia tragando uma caneta.
Olhei um pouco para Lilian,
senti algo estranho dentro de mim,
senti como se eu quisesse destruir tudo mais uma vez.
Meu pensamento foi perdido entre aquele cenário ridículo
de garrafas de cerveja e paredes mofadas
e eu pude sentir o olhar de Lilian sobre mim.
Fumei meu cigarro, depois de um tempo Solidão saiu do banheiro.
Ele me disse com sua voz grave
-Pare de fugir de quem você é, pare de fingir que você escolheu e...
Eu olhei para ele, prestando bastante atenção
-...e pare de fingir que você não sabe que meu irmão vai destruir tudo. Eu sei que você está assustado e finge que não sabe o que fazer, mas no fundo você sabe. No fundo você sabe quem é a garota, e que ela é capaz de te salvar, e consequentemente me salvar...
-Eu já disse que eu não sei o que ela é! Ela é só uma garotinha que apareceu por aqui...
-Você sabe que nada no Hotel Rebeka é só o que parece ser. Espero que você não se arrependa do que está fazendo, vou embora.
Eu fechei meus olhos
tentei dizer "tchau" mas só mexi os lábios e soltei fumaça.
Quando abri os olhos,
eles estavam molhados
e eu quis sair de lá.
Quis fugir.
Tentei ser simpático com o balconista
dei uma boa olhada nos olhos de Lilian
mas não conseguia pensar.
Não sabia o que ela fazia ali
nem por que toda aquela preocupação com o tédio
eu só não queria mais estar ali.

Eu fui passear.
deixei minha mente vagar pelos pensamentos
e tentei não resistir.
Quando vi, estava em uma praia,
novamente.
De alguma forma, eu percebi durante a caminhada
o pensamento de Lilian cantava alguma música dentro da minha cabeça.
Eu continuei andando em frente,
sentindo a areia entrando pelos meus dedos,
subindo encima do meu pé
depois sendo jogada ao ar conforme eu levantava o pé para o próximo passo.
Talvez por causa do sol forte batendo na minha cabeça
talvez por causa dos meus pensamentos
não sei, sei que quando eu vi,
eu já não queria mais nada
apenas caí na areia, de frente, com o rosto virado
em direção ao mar.
Uma sensação de vazio no meu estomago
havia preenchido o ar,
e tudo ficou ali, esquecido.

domingo, 4 de setembro de 2011

Um desenho ao acaso - Capítulo 6

Eis que no boteco
só há o balconista,
e dois homens sentados ao fundo.
Eis que Lilian senta-se ao balcão.
Ela pede um xis calabresa um café e um torresmo.
E come um torresmo com o café,
enquanto espera o lanche.
Fazia tempo que o balconista não via uma mulher comer tão prazerosamente.
Ela comeu o torresmo e ficou com as mãos engorduradas,
quando perguntou onde estava o guardanapo,
ele respondeu algo com um sotaque
e com uma voz
que fez com que ela tivesse certeza que aquele homem
era o mesmo que havia atendido ela
no bar que ela foi após sair do hospital.
Mas ela ainda continuava com as mãos engorduradas,
e viu em uma das mesas uma televisãosinha de guardanapos.
No caminho para a televisãosinha, ela reparou nos dois homens conversando
duas mesas adiante.
Ela viu que um deles era enorme,
e a primeira vista ele só parecia enorme,
mas quando ela ficou de pé e se aproximou um pouco
viu que ele era mais que enorme.
Dava pra ver que ele tinha uma barba crespa,
era branco,
mas estava sujo
o cabelo parecia ter sido vermelho há muito tempo atrás
agora era de um preto que remetia sujeira.
Pensou que fosse um mendigo,
mas era grande demais para ser um mendigo.
...Não que exista limite de tamanho para se morar na rua
mas a polícia não deixaria um homem desse tamanho andando na rua...
... Não que isso faça muito sentido de fato,
mas foi o que Lilian pensou.

Após limpar os dedos ela voltou para o balcão
olhando para trás,
ouvindo uma voz cavernosa que saia daquele ser.
A voz era tão grave, que até então ela havia pensado ser um ronco
de algum motor na rua.
Ela parou de olhar... ou ao menos tentou.
Ela não conseguia.
Tentou se concentrar no café, no caderno que ela havia achado
no cheiro de calabresa que subia,
mas de dez em dez segundos ela olhava para o homem imenso.
Ela perguntou para o homem do bar
se ele tinha um lápis
e ele deu uma caneta preta para ela.
Ela abriu o caderno
e começou a desenhar as costas daquele homem enorme e sujo.
Só enquanto desenhava reparou que ele usava roupas
que pareciam ser ao mesmo tempo
velhas, caras e sujas. Mas velhas
do tipo que você nunca encontrará em um brechó.
E reparou que a cadeira que ele estava sentado era diferente das outras cadeiras do bar.
As cadeiras do bar eram cadeiras pequenas de alumínio,
ele destruiria elas apenas se apoiasse a mão em uma delas.
Ele estava em uma cadeira
que parecia ser feita com a mesma madeira das coisas do seu quarto do hotel,
uma cadeira enorme.
E ela viu que por trás daquela montanha humana, havia um homem normal.
Talvez até menos que normal, havia um homem com aparência
de um adolescente velho.
Depois de um tempo observando ele
ela chegou na conclusão que não conseguia dizer nada sobre ele.
Não era magro nem gordo,
cabeludo nem careca,
negro nem branco,
nada. Ele era um meio termo
entre tudo o que ela podia imaginar.
Chegou seu lanche.
Ela deu uma mordida e voltou a desenhar.
Por algum motivo, ela desenhava muito bem.
Por algum motivo sua técnica era perfeita para a caneta esferográfica preta,
e as linhas do papel, davam todo um charme ao desenho.
O balconista olhava para o desenho
com muita admiração
enquanto lavava alguns copos.
Ela desenhou o homem gigante em uma posição
como se ele fosse atacar o outro homem;
com os braços levantado,
e a mão enorme aberta.

Pelo jeito eles estavam em uma discussão
e o homem enorme tentava convencer o outro de algo
e o outro parecia simplesmente não se importar.
-Seu lanche vai esfriar desse jeito, menina.
Diz o balconista com sotaque.
Ela pára um pouco de desenhar,
e seu estômago agradece.
A rua começa a ficar movimentada, conforme o dia começa
pessoas de terno passam apressadas,
esbarram umas nas outras
e não param por nada.
Lilian possuia um dia nulo, sem nada pra fazer,
ela precisava de algo para matar seu tempo,
ela pensou em comer.
Podia comer e assistir TV,
mas ela ia acabar deprimida gorda e entediada,
sem contar que não estava afim de achar um outro quarto de hotel com TV.
Ela pensou em fazer amigos, mas logo ficou com preguiça.
Aí ela teve uma boa idéia,
ela pensou em terminar o desenho. Aí depois que ela terminasse
ela realmente não teria nada pra fazer,
mas até lá, ela estaria segura,
só quando terminasse
aí sim ela teria realmente algum problema pra solucionar.
Limpou a mão no guardanapo,
pegou a caneta, deu uma olhadinha no desenho,
e quando olhou em direção a mesa
percebeu que o homem enorme havia ido embora.
Por alguns minutos ela ficou olhando para o homem que havia sobrado na mesa.
Parecia normal, dois homens saem para beber e conversar,
um tem um compromisso e precisa ir embora e o outro fica mais um tempo de bobeira na mesa.
A parte estranha não era ter um homem sentado frente a uma cadeira gigante vazia.
A parte estranha é que havia um machado
com mais de um metro
encostado ao lado da cadeira enorme de madeira.
Ele havia ido embora e ela não havia notado um homem
do tamanho de um urso
passando por traz dela
em um corredor
com uma largura normal para pessoas normais,
pequeno para pessoas grandes
e minúsculo para ursos fantasiados de gente.
Não fazia sentido.
Ela olhou para o outro cara
ele tomava uma cerveja que parecia estar trincando
e fumava um cigarro agora,
com os olhos perdidos em algum lugar
entre as mais de dez garrafas que haviam na mesa.
A coerência estava deficiente.
Lilian não notava isso.
Ninguém nota.
Lilian só se lembrava de ter vivido naquele mundo,
e naquele mundo, o fato de um homem do tamanho de um urso
sumir de uma hora para outra
era uma coisa que apenas acontece
e não se questiona.
No nosso mundo, isso seria motivos para pessoas sensíveis ficarem loucas.
Mas o tempo todo a incoerência reina,
e em cada quina poderíamos achar um motivo para enlouquecer
cada universo tem um nível de incoerência com o qual ele está disposto a conviver.
... mas algo coçava no cérebro de Lilian.
As coisas começaram a ficar com um clima que de uma hora pra outra
iam desaparecer, como quando acordamos de um sonho.
(claro que eu nunca faria uma história cretina
onde no final as pessoas acordam e percebem que foi tudo um sonho)

Então houve um barulho
Tschhhhhhhhhhhhh, tsss, nhec vuuup, pá!
uma descarga, uma torneira, uma porta se abrindo
e um urso em forma de gente
tendo que virar de lado
para passar por uma portinha de correr
que ficava nos fundos do bar.
Ele passou, e Lilian viu seu rosto
e por alguns segundos,
ela sentiu que ele era o homem mais mau e durão da face da terra.
Barbudo como um Viking, cheio de cicatrizes,
um olhar feroz, que as pessoas de hoje em dia já não possuem.
Mas tudo isso tranquilizou Lilian, e vocês sabem por que?
Coerência. Senso de realidade. Tudo havia voltado.
Ele não havia desaparecido sem que Lilian percebesse,
ele apenas havia ido ao banheiro,
afinal, mesmo sendo um ogro, não existe bexiga que sobreviva a toda aquela cerveja!
Viu, o mundo tinha coerência... é, tinha... tinha sim.
Ela achou chato ficar olhando a vida alheia de dois homens
só por que um era gigante e o outro estranho. Acendeu um cigarro
ficou lendo os lanches que eram servidos lá
e pensando que todos botecos tinham uma placa idêntica
com as letrinhas saltadas amarelas, indicando "quanto estava o que".
O cigarro terminou, ela se levantou
pediu mais um café em um copo plástico
pagou com o cartão
pegou o caderno
foi devolver a caneta, mas o homem disse pra ela ficar com a caneta
-Fica c'ocê, de presente, Fia.
-Brigada.
Ela guardava a caneta, e o maço no bolso
quando o homem amigo do Viking foi ao balcão.
-Oi Ernandes, ficou quanto?
-Por conta da casa pr'ocê.
-Mas foram mais de dez cervejas, não é certo...
-Pro senhor é por conta da casa, não reclama.
-Hah, brigado Ernandes!
Ernandes voltou a lavar copos distraído
como se fosse normal, e
o homem estranho deu uma olhada para Lilian,
uma olhada funda, que invadiu sua alma
de uma forma profunda e ao mesmo tempo não invasiva
como se eles fossem irmãos.
Lilian ficou meio perplexa com tudo aquilo,
e totalmente perplexa quando viu ele indo em direção a mesa para pegar sua jaqueta
e percebeu que o homem urso não estava mais lá
e que não havia mais machado nem cadeira,
apenas um bocado de cervejas encima de uma mesa
com duas cadeirinhas de alumínio.
Ele saiu do boteco antes que ela pudesse se recuperar do choque.
E quando ela se recuperou,
se viu meio a um boteco
onde nada fazia muito sentido
onde o dono cometia suicídio financeiro e dava canetas
onde homens do tamanho de armários desapareciam
e por mais que nada fizesse muito sentido
ela ainda estava ali
e a vida continuava a fluir
e o dia estava apenas no começo.
Ela pegou o café...